Alguns dos jargões mais utilizados na última corrida eleitoral (e continuam sendo) foram o “vai pra Cuba” e o “vai pra Venezuela”. Estas frases são repetidas constante e intensamente contra toda e qualquer manifestação de oposição ao futuro governo eleito, indiferente da posição política, contudo, atribuindo maior ênfase à esquerda do espectro político. Segundo os proferidores destes dizeres, a esquerda é comunista, e assim, deve viver sob regimes aos quais assim denominam.
Porém, esquerda não significa comunismo.
Em poucas palavras, em ciências sociais e políticas, fazendo um resumo extremo e, obviamente, não esgotando o assunto, o comunismo é uma teoria ou sistema econômico e político baseado na propriedade coletiva dos meios de produção e inúmeras outras especificidades. Entretanto, existe uma variedade de escolas diferentes dentro do próprio comunismo e a esquerda não se esgota no comunismo.
À esquerda do espectro político também existe uma gama variada de ideias. Entre centro-esquerda e a extrema-esquerda as opções são infinitas. Nem todo o espectro político da esquerda é radical e propõe regimes autoritários. Aliás, os principais regimes autoritários de matriz totalitária no século XX surgiram do seio das democracias liberais, tenha-se presente o nazismo, o fascismo italiano, espanhol (Franco) e o salazarismo português. O golpe militar em 1964, no Brasil, se estabelece sobre um governo progressista, que propunha reformas de base sob ampla demanda e participação de setores da sociedade. Tal argumento não desconsidera governos ditatoriais de esquerda como na URSS, no Kamboja, entre outros países, sobretudo do leste asiático. Posições mais centrais desse espectro propõem um estado de bem-estar social ao modo tupiniquim, bem como economia mista e setor privado próspero e forte.
A polarização política no Brasil admite somente duas possibilidades e pressupõe que a convivência saudável entre as diferentes visões é inconcebível, mas não é!
Vou dar o exemplo da Holanda, porque é onde resido atualmente e conheço um pouco do sistema político. A Holanda tem um governo de coalizão. Atualmente, o primeiro-ministro é de direita, mas o partido dele se coligou com outros partidos, inclusive o partido dos trabalhadores (Labor Party – PvdA) da Holanda (centro-esquerda), e um partido fortemente religioso cristão-democrata (CDA). Aqui na Holanda homossexual pode constituir família, o governo tem preocupações ambientais, o aborto é legalizado, o uso de drogas recreativas é aceito, a prostituição é legalizada e regulamentada, existem muitos programas sociais, inclusive para idosos e deficientes, além de tantas outras leis que priorizam a equidade. Para se ter uma ideia, o salário mínimo aqui é cerca de 1600 euros mês, uma pessoa que recebe um provento considerado médio-alto recebe cerca de 6000 euros mês, ou seja, a pessoa que recebe um bom salário, recebe de 3 a 4 vezes o valor de um salário-mínimo.
Na faixa salarial de 6000 euros mês, paga-se 40,85% de impostos. Os impostos são altos, sim! Mas em contrapartida, a criminalidade é muito baixa, as escolas são de excelente qualidade e gratuitas (contribuição voluntária), as universidades custam pouco (cerca de 1 salário mínimo por ANO e existem várias opções de bolsa de estudos), o acesso ao saneamento básico é geral. Para as pessoas que não têm condições de pagar moradia e necessidades básica o governo tem programas sociais. O financiamento do primeiro imóvel é de 100% (costumava ser de 106%, mais do que o imóvel em si) com juros baixíssimos (cerca de 2-4% ao ano), o transporte público é de qualidade e existe muito incentivo à cultura.
Existem vários outros países, além da Holanda, que possuem programas sociais, altos impostos e maior equidade e não são países comunistas. Lutar por programas sociais e preferir a esquerda do espectro político não significa ser comunista.
Curioso observar que, quando repercutiram notícias na mídia internacional sobre a corrida presidencial e a ameaça à democracia no Brasil, havia um forte questionamento da legitimidade destas opiniões baseando-se na premissa de que personalidades e instituições renomadas não conhecem a realidade brasileira. Estranhamente, estes mesmos que negavam a validade das opiniões internacionais em um post, criticavam e mandavam para os ditos “países comunistas” seus opositores em outro.
Precisamos achar um meio de coexistir. Não conseguiremos ser uma sociedade funcional se continuarmos enxergando o outro como inimigo. Nos posicionamos no mundo tomamos decisões através das informações disponíveis, das relações que construímos e do modo como interpretamos o meio no qual estamos inseridos. Conviver com diferenças é necessário e urgente. O “vai pra Cuba” e o “vai pra Venezuela” é, em última instância, a tentativa de eliminar o outro. Vale lembrar que os momentos mais violentos historicamente documentados surgiram da tentativa de aniquilação da ameaça representada pelo diferente.
Sandy Rafaela Krambeck
Mestra em Sociologia Política
Colaboradora da Revista Maiêutica de Ciências Humanas e Sociais da Uniasselvi