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Mundo do trabalho: os frutos de um país que não acertou as contas com o próprio passado

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O termo “trabalho” em sua origem latina tripalium – antigo instrumento de tortura, historicamente foi usado para classificar pessoas. Na Grécia antiga, o trabalho braçal era feito pelos escravos, estes, vistos e divididos pelos romanos como instrumentos de trabalho. Com o advento da sociedade capitalista o trabalho passou a ser visto como enobrecedor, não obstante, um desempregado sofre pressão social por não estar em posse do poder de consumir, de ser bem-sucedido. Considerando a sentença atribuída ao calvinista Benjamin Franklin (1706 – 1790): “o trabalho dignifica o homem”, podemos refletir, afinal, qual trabalho? Dignidade ou exploração? No Brasil, cerca de 6 milhões de brasileiros desempenham as atividades profissionais como empregado (a) doméstico (a). Desse número, 90% são mulheres, 60% são negras e menos de 40% possuem carteira assinada[1] de acordo com dados da ONU Mulheres (2020). Esses números devem chamar atenção para três principais características a serem analisadas com maior profundidade: gênero, cor de pele e papel social.

 

Em tempos de pandemia, em que muitas pessoas que estão cumprindo o isolamento social e dispõem da possibilidade de trabalho remoto no conforto e segurança de seus lares, ou como preferem no termo estrangeiro “home office”, tornou-se perceptível que em alguns casos as dificuldades como acesso a internet, materiais e aparatos tecnológicos de qualidade ou com a conciliação de atividades domésticas, incluso o cuidado com filhos menores acabaram impactando nas atividades profissionais. Mostra disso, são os números alarmantes quando a ótica dessa situação é analisada sob o recorte de gênero e cor de pele. Como é possível identificar na análise estatística de produção científica nesse período, de acordo com dados compilados pela Digital Science (2020), instituto de pesquisa de Londres, o número de publicações submetidas por pessoas do sexo feminino despencou consideravelmente durante a Pandemia do COVID-19, agravado quando se considera o número de publicações por mulheres que já são mães. Os números evidenciam que a proporção de artigos aceitos com uma primeira autora do sexo feminino caiu abaixo da tendência histórica para submissões feitas em março, abril e maio. Em abril, o declínio foi de dois pontos percentuais, caindo para 31,2%, e em maio, registrou-se um colapso de sete pontos, para 26,8%.[2]

 

Entretanto, reclamar das dificuldades em Home Office possibilita em contrapartida uma chamada de atenção à valorização do trabalho doméstico: qual é a qualidade no contexto social em que estes profissionais estão expostos? Lá estão, novamente, mulheres. Segundo a CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe) as mulheres representam cerca de 93% das funcionárias empregadas por famílias. Durante a pandemia do coronavírus, sete em cada dez ficaram desempregadas ou perderam horas de trabalho. A Comissão calcula que o índice de informalidade do setor é de 77%.[3]  Dos 4,9 milhões de empregos perdidos no Brasil nos meses de fevereiro e abril, 727 mil são do serviço doméstico. Mulheres negras, de classe baixa, que recebem uma das menores remunerações como profissionais do trabalho doméstico.

 

O topo da desigualdade de renda no país é ocupado por mulheres pretas ou pardas conforme a pesquisa Desigualdades sociais por cor ou raça publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019. Os estudos indicam que no ano de 2018 as mulheres receberam (em média), menos da metade dos salários dos homens brancos (44,4%). Muitas destas mulheres passam horas em transporte público para ir e voltar de suas casas ao local onde trabalham, isso quando não são convidadas amistosamente e pretensiosamente para viver em um quarto (senzala moderna) dentro da própria residência de trabalho, estando cem por cento à disposição de uma família que não a pagará a mais por isso. Parece algo absolutamente normal, porém, mais do que nunca, em tempos de pandemia, onde há a necessidade de isolamento para a garantia da saúde de todas as partes, essa cena evidencia o racismo estrutural na nossa sociedade, fruto de uma sociedade construída em pilares escravocratas. Acentua-se nesse contexto a categorização da importância de trabalho sobre trabalho, e vida sobre vida, não obstante, a exposição de empregadas domésticas em tempos de pandemia torna-se não só uma questão de problematização de ordem sanitária, mas principalmente de ordem cultural e social.

 

Em entrevista concedida ao Jornal O Globo em 2019[4] a ativista e rapper Preta-Rara comenta: “[…] o Brasil ainda tem o ranço da escravidão e do ato de servir. […] Diversas vezes, quando era empregada doméstica, estava limpando a casa da minha patroa e ela me chamava para pedir um copo d’água. Tem ainda esse ranço colonial,” diz Preta. É necessário superar a estigmatização do (a) empregado (a) doméstico (a) que a nossa sociedade construiu. No contexto hodierno, é inadmissível que a empregada doméstica ainda possa ser vista por seu empregador como criada, e não trabalhadora. Trata-se de zelar não apenas pelo reconhecimento, valorização e remuneração pelo trabalho de forma constitucionalmente legal, mas sobretudo, pela garantia de direitos fundamentais ao ser humano.  O trabalho do empregado doméstico não é inferior ao do homem branco que reclama de Home Office porque sua conexão 5g está com problemas. Ela como qualquer outro profissional é digna, possuidora de direitos igualmente garantidos a toda e qualquer pessoa.

 

Considerando que o Brasil é um dos países com maior número desses trabalhadores atuantes, é necessário rever com cautela, como o papel de empregado doméstico pode ser dispositivo para a manutenção de uma realidade cruel, de prerrogativas e interesses de uma classe branca burguesa. Nestas terras, as manifestações elitizadas e preconceituosas se fazem presente em todos os espaços e se apresentam com as mais variadas facetas. A fala do Ministro da Economia em fevereiro de 2020 em defesa dos interesses do mercado financeiro demonstra alguns resquícios deste Brasil que tenta esconder as feridas da extrema desigualdade. Ao defender a alta do dólar Guedes compara os momentos: “todo mundo indo pra Disneylândia, empregada doméstica indo pra Disneylândia, uma festa danada”. Observa-se que, a partir do momento em que as possibilidades antes restritas a um grupo elitizado começam a serem expandidas e acessadas pelas demais classes sociais, isso incomoda os detentores de privilégios. Essa “festa danada”, conotada em sentido pejorativo pelo Ministro em fala supracitada, implica em um movimento da estrutura social que estremece as relações de poder. E isso incomoda, porque a elite não quer dividir a festa com quem pode serví-los.

 

As feridas deste incômodo são oriundas do processo de formação sócio-histórica de um Brasil construído com “braços fortes”, de base escravagista e que segue fielmente a cartilha exploratória do modo de produção capitalista. Se o trabalho dignifica o sujeito, antes, é necessário dignificar o trabalho pensando em sua condição para que todo e qualquer sujeito, não categorizando as tarefas como resquícios de uma sociedade racista, machista, patriarcal e que admita que mesmo uma atividade tão considerada essencial ainda seja mal paga e mal valorizada no contexto dignificante de uma realidade que ainda mal superou o próprio passado. Talvez, neste delicado contexto pandêmico em que nos encontramos inseridos, resida uma nova oportunidade para o Brasil acertar suas contas, tentar compreender as próprias origens e como chegamos até aqui, a fim de não repetir no futuro os erros do passado. Só há uma certeza: a de que isso não se fará com os discursos racistas cada vez mais assumidos ou com a viralização de ingenuidade e descaso nas redes de comunicação com excessivas notas de repúdio.

 

Cristiélen dos Santos: Professora de Sociologia. Pós-graduanda em Educação e Diversidade pelo Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC). Membra do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas – UNC/CNPq.

Reginaldo Antonio Marques dos Santos: Professor de Sociologia. Pós-graduando em Educação e Diversidade (IFSC). Membro do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas –UNC/CNPq e do Grupo IDD: Identidades, Democracia e Desenvolvimento –IFSC/CNPq.

 

[1] http://www.onumulheres.org.br/noticias/trabalhadoras-domesticas-fazem-campanha-por-direitos-durante-a-pandemia-covid-19-e-articulam-apoio-da-cooperacao-internacional/

[2] https://www.timeshighereducation.com/news/pandemic-lockdown-holding-back-female-academics-data-show

[3] https://oglobo.globo.com/celina/pandemia-de-covid-19-crise-economica-atingem-trabalhadoras-domesticas-de-forma-desproporcional-na-america-latina-24505371

[4] https://oglobo.globo.com/celina/e-para-que-quarto-de-empregada-deixe-de-ser-senzala-moderna-diz-preta-rara-sobre-livro-em-que-reune-relatos-de-trabalhadoras-domesticas-23943688

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