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As mulheres não existem: ou da exploração e silenciamento de vozes

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 Escrito por; 

Cintia Neves Godoi

Professora de Geografia

Sandro Luiz Bazzanella

Professor de Filosofia

 

Para a filósofa Nancy Fraser o capitalismo não é apenas um sistema econômico, mas uma ordem social institucionalizada articulada à exploração social, da natureza, das riquezas de populações  com suporte do poder público como estrutura coercitiva para acumulação de riquezas, com exaustão e desestabilização dos elementos das relações dos indivíduos consigo mesmos, com os outros indivíduos com que compartilham o espaço público, com as formas de vida que constituem o mundo em diversidade vital.

 

 

O modo de operar, portanto dessa complexa ordem exige expropriação de indivíduos, comunidades e populações, do trabalho individual e socialmente articulado, de energia de cuidadores que ela explicita como responsáveis pela reprodução dos seres humanos, por meio de cuidados como a gestação, o parto, a amamentação, a alimentação, o banho, a socialização, a educação, a cura, a proteção, e o consolo. Ou seja, de tudo que é essencial para sustentar os seres humanos, que além de biológicos são sociais. E, aponta para o fato de que historicamente este trabalho não é remunerado e é performado por mulheres. Ou dito de outra forma, o trabalho imputado às mulheres na divisão social das atribuições, fundamental na manutenção e reprodução do modo de produção capitalista é trabalho socialmente invisível, superexplorado na forma da mais-valia absoluta.

 

 

Interessante que sempre que se quer conferir sentido e expressão de veracidade se recorre a um argumento se recorre à história. É sempre a construção, a trajetória, a perspectiva histórica, a capacidade de referenciamento que garante um entendimento mais complexo das questões, condições em temas diversos.

 

 

Mas, se repararmos bem, este argumento vale para reforçar aquilo que já existe, uma história escrita, documentada, e nesta, nem todos estão presentes, ou estão presentes performando, como a filósofa chama a atenção, mas não necessariamente existindo em plenitude de direitos e anseios. E, por isso mesmo aqui diremos que: as mulheres não existem na história. Ou ainda, que se trata de negar sua existência, pois reconhecê-la significa deparar-se com a pavorosa exploração social a que são submetidas pela lógica do capital que extrai de sua energia física e psíquica para a condição de acumulação.

 

 

O que é a história, senão a construção de uma narrativa, discurso, emaranhados de relatos, percepções, que apoiam o entendimento do que foi a existência em determinado período, de um determinado grupo que detinha, ou detém a hegemonia do exercício do poder? E de que maneira poderíamos falar de uma história se tantos não puderam relatar, escrever, se manifestar e viver suas vidas? Imputar o silêncio a determinados grupos humanos é negar a possibilidade de sua expressão, de sua visão de mundo, de sua existência.

 

 

O trabalho árduo de pesquisadores, historiadores, arqueólogos, antropólogos, geógrafos, sociólogos, filósofos é justamente também alcançar as nuances dos excluídos, marginalizados, dos sem voz, dos condenados ao não reconhecimento de sua existência. Mas, a operação dos vencedores é por vezes, difícil de dar conta, de desfazer, de destruir. Tanto é que no fundamento das formas de relação as minorias ainda não existem por elas, apenas resistem e tentam sobreviver, embora destituídas de suas possibilidades em todo o momento.

 

 

O maior exemplo disso é o fato do trabalho em ambiente familiar, nas casas, nos cuidados não se apresentar aos olhos, à percepção dos indivíduos inseridos naquele contexto familiar ou social e assim, ser invisibilizado, desmoralizado, desvalorizado e considerado peso para as sociedades que escravizam as mulheres até hoje no cuidado das gerações considerando-as menores por isso, destituindo suas possibilidades de outras vidas, porque as condenando sem remuneração e sem respeito a esse cuidar.

 

 

Quando das revoluções contra o capitalismo, por exemplo, movimento que se alastrou em diversos países, as lutas eram por melhores condições de vida do trabalhador, redução de jornada de trabalho, direitos trabalhistas. A mulher não existiu na história revolucionária do proletariado. Ou se existia sua voz era menor e, não raras vezes não era e, não é ouvida.

 

 

No avanço das lutas que se espalharam pela Europa, Ásia, América Latina, em corpo como força revolucionária, mas não em direitos pelo reconhecimento do trabalho das que permanecem cuidadoras, por exemplo. Quem cuida das crianças, dos idosos, das gerações, da alimentação, das casas para que os operários possam existir? E, para que pudessem lutar por melhorias? Não se consideraram salários, direitos às mulheres em casa, ou mesmo no poder. A mulher não existiu nas convulsões sociais, sejam elas capitalistas, comunistas e, socialistas.

 

 

Nas transformações urbanas vivenciadas na maior parte do mundo, no alcance estatístico a partir dos anos 2000 da população em sua maior parte habitando as áreas urbanas, as mulheres vieram para as cidades, migraram com suas famílias, deixaram suas vidas em áreas rurais e somaram habitantes para a pujança urbana de um mundo moderno industrial e comercial. As mulheres não existiram no processo de urbanização. Nos nomes das ruas, das praças, das escolas, das avenidas, das rodovias que rasgam o país, dos aeroportos, não se fez ou faz referência às suas vidas.

 

 

Quando das revoluções sociais, na tomada de poder em Havana, nas marchas contra a ditadura nos tantos países da América Latina, mas também no contexto das ditaduras civil, empresarial e militar que se instalaram a partir dos anos 60 do século XX, de mãos dadas, promovendo manifestações, organizando movimentos, estatisticamente, intelectualmente, elas estavam lá. A mulher não existiu na história ditatorial latinoamericana, se existisse, se fossem seres viventes, rememorar torturador seria um crime e acarretaria prisão por tamanha violência.

 

 

Na reabertura, na redemocratização, na luta pela educação pública, nas lutas pela consolidação de regimes democráticos ao longo, ao largo de todo o globo, nenhuma palavra na constituição por geração de renda e consideração do trabalho dos cuidadores. A mulher não existe nas constituições.

 

 

 

Para compreensão da organização e estruturação da economia capitalista, Marilyn Waring apontou: a mulher não existe na composição do Produto Interno Bruto. O trabalho, a dedicação, a exaustão, a energia de todo o esforço das cuidadoras que carregam o peso de serem responsáveis por crianças e idosos não tem pagamento algum por parte da sociedade. Suas vidas garantem o funcionamento de todas as demais atividades, que possibilitam trabalho dos demais, que possibilitam inclusive aposentadoria dos que nunca tiveram rebentos, pois a sociedade depende de outras pessoas para sua continuidade.

 

 

Na política, nos orçamentos secretos, nos orçamentos disponibilizados na transparência, nos avanços tecnológicos, na engenharia genética, na inteligência artificial, no cuidado nas tarefas de casa apoiando crianças com necessidades diversas, com diferenças de atenção, com síndromes raras, com hiperfoco, todas maltratadas em ambiente social, e por vezes também no escolar, crianças estas, que se tornaram criadoras e geradoras de inovações tão caras à ciência, progresso e modernidade, nenhum centavo em edital de inovação e tecnologia dedicado às cuidadoras que tanto trabalham nestes projetos, quanto garantem mentes e condições para que mentes se dediquem a estes projetos. A mulher não existe na ciência, no progresso ou modernidade.

 

 

Na atualidade, na efervescência dos movimentos pelas minorias nas cidades de todo mundo, no que há de mais verde, mais técnico, mais rebuscado, nenhum vintém para projetos de garantia à vida digna de cuidadores. As mulheres não existem nas cidades inteligentes. Pois os movimentos sociais urbanos clamam por ciclovias, por transporte público, aplicativos de acesso e aluguel à diferentes modos de transporte, lutas por direitos na participação das decisões do orçamento público mas, não há solicitação de renda e respeito às mulheres em casa.

 

 

Na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1789, ou mesmo na Declaração dos Direitos Humanos da ONU de 1948, as mulheres tinham reconhecidos seu acesso aos direitos e, em pleno século XXI seus direitos constantemente negados, usurpados, violentados. Agressão física, simbólica, moral se manifestam cotidianamente e, são tratados como manifestações secundárias, quando não raras vezes justificadas pelas autoridades no exercício de suas funções. A mulher não existe como ser humano que tem direito a plenitude dos direitos.

 

 

Enfim, o movimento com perspectiva histórica foi utilizado para tentar garantir algum sentido no que reivindicamos aqui, a inserção dos cuidadores na renda e cidadania da sociedade, pois sem isso, a única palavra que pode ser utilizada para a sociedade global, não é aldeia, não é globalização, não é mundialização, é escravagismo. As mulheres, os cuidadores se apresentam como escravos ainda hoje, e todos nós fazemos usos desta situação para dar continuidade à tragédia de nossas existências. Enquanto essa situação se perpetuar, cuidadores – mulheres não existem ainda hoje.

 

 

E assim como as mulheres, as minorias todas, lgbtqi+, negros, indígenas, quilombolas, os pobres do mundo são tratados da mesma maneira. Ninguém existe, apenas homens, a elite, os brancos, os demais subsistem … mas aos poucos vamos nos colocando em condição de resistência e de luta para alterar o curso insustentável da exploração das minorias na história.

Equipe Gazeta
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