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Análise: conflito na Ucrânia não é história de mocinhos e vilões

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Não há sombra de dúvidas que qualquer ação militar que atinja alvos civis deve ser condenada com veemência por qualquer país que se considere democrático. Na madrugada de hoje (24/02), assistimos ao processo de invasão russa na Ucrânia e a consequente proliferação de posicionamentos dos chefes de Estado ocidentais. Também foi rápida a reação na mídia (por onde assistimos e obtemos todas as informações e imagens do conflito), com seus especialistas a condenar a ação russa.

 

O que chama atenção nos noticiários e nas redes sociais são as informações filtradas sob o ponto de vista estadunidense, no qual a invasão ocorre “do nada”, sem qualquer motivação. Já as redes sociais são a casa dos fanáticos e daqueles que têm opinião para tudo baseados em mero achismo: de um lado torcem por uma ação militar da OTAN/EUA/Reino Unido e do outro defendem com unhas e dentes o discurso expansionista de Putin.

 

Convido o leitor a fazer um breve trajeto pela política externa que culminou no conflito para que tenhamos uma noção melhor abalizada sobre o que ocorre e, sobretudo, para não mais reproduzirmos as narrativas hollywoodianas do “bom” contra o “mau”, dos mocinhos atacados pelos vilões.

 

Os seguintes elementos, de maneira resumida, são importantes para compreendermos o que se passa: 1) Acordo de não-expansão entre EUA e Rússia no pós-guerra fria; 2) as questões territoriais; 3) nazismo; 4) um presidente inepto; 5) imperialismo e a criação de narrativas e fábulas; 6) a hipocrisia generalizada sobre a guerra.

 

  1. Acordo de não-expansão entre EUA e Rússia no pós-guerra fria

Com o fim da União Soviética, o mundo passou por uma grande reformulação em termos políticos e econômicos. O grande império do Leste ruía e assim deixava de influenciar os rumos políticos de boa parte do mundo. Naquela situação, os Estados Unidos foram alçados ao patamar de hegemonia global, sem o contrapeso dos soviéticos.

 

A URSS havia caído, mas Rússia e Ucrânia se mantiveram como potências militares. Com isso, o então líder russo Mikhail Gorbachev impôs uma exigência à OTAN, organização liderada pelos EUA: não haveria expansão do poder estadunidense para além dos campos de influência já sedimentados naquele período. Isso significava que a presença da OTAN deveria se contes até a Alemanha.

 

Àquela altura o líder russo recebeu a promessa dos EUA de que a OTAN não avançaria “nem uma polegada” para o Leste, ou seja, que não se aproximariam das fronteiras russas.

 

Mas não foi exatamente isso o que aconteceu. Novos países passaram a fazer parte da organização com o passar dos anos, incluindo a Polônia, ex-república soviética que faz fronteira com a Ucrânia. De 2002 em diante a OTAN abriu a possibilidade de adesão voluntária de países à organização. Desde aquele momento, os russos passaram a pressionar a Ucrânia para que não ingresse, uma vez a OTAN em suas fronteiras significaria o mesmo que a aproximação dos Estados Unidos sobre a Rússia.

 

  1. As questões territoriais e identitárias

Algumas pessoas podem se perguntar por que a Rússia, que é o maior país do mundo em território, dá tanta importância para essa fronteira oeste em específico. A questão central é que a maior parte da população russa habita o Oeste do país, região mais próxima da Europa ocidental.

 

 

Outro fator preponderante é o aspecto econômico. A maior parte do gás natural russo que abastece a Europa passa por tubulações que cortam a Ucrânia. Dessa maneira, a Rússia paga uma espécie de “imposto de passagem” aos ucranianos. Pagar menos – ou nada – seria uma considerável conquista financeira russa.

 

 

Além disso, a Ucrânia é o “seleiro da Europa”, ou seja, local de onde sai grande parte dos bens primários do continente, possui reservas de gás e de minérios. Esses são elementos que tornam o país estratégico para toda a Europa.

 

No tópico anterior você leu que a Ucrânia figurava como uma potência militar ao fim da Guerra Fria. Mas, por que não é mais? É sabido que a URSS foi uma potência nuclear, título herdado pela Rússia. Mas a Ucrânia também herdou potencial nuclear no período da dissolução. O parlamento e a sociedade civil ucranianas foram tomados por extensos debates sobre manter-se com equipamentos nucleares como forma de garantir defesa contra futuras invasões russas ou, por outro lado, desfazer-se dos instrumentos em nome da paz. A segunda opção venceu e desde então a Ucrânia passou a ser assediada pela vizinha.

 

Já ao tratar das questões identitárias tudo fica mais nebuloso. As divisões territoriais nem sempre dão conta de atender os elementos culturais. Uma expressão clara disso é a colonização europeia na África, que redesenhou fronteiras e deixou no mesmo ambiente geopolítico nações com culturas diametralmente opostas. Resultado disso é a impossibilidade de formar uma coalizão que governe em nome de um bem comum. Um exemplo claro disso foi a guerra civil de Ruanda, nos anos 1990, o maior genocídio desde o holocausto. É óbvio que não existe sequer condição de comparar a África, colonizada, com a colonizadora Europa, mas este exemplo oferece alguma noção do que se passa entre Rússia e Ucrânia.

 

Por mais que a Crimeia, Donetsk e Luhansk tenham ficado sob o domínio ucraniano, parcela considerável da população dessas províncias se identifica como russa e esse é um elemento crucial, utilizado por Putin para legitimar sua ofensiva militar. Sob outras circunstâncias, a Crimeia já havia sido anexada em 2014. Naquele momento, separatistas pró-Rússia tomaram as ruas em um sangrento conflito. Outro elementos que faz Putin se movimentar é a ideologia de que a Rússia precisa se reerguer enquanto império que foi nos tempos da URSS.

 

Os ucranianos, tal como outros povos, lutam diariamente para que sua cultura seja respeitada. Têm, hoje, 44 milhões de cidadãos – uma das maiores populações da Europa – e fazem de tudo para defender sua cultura e seus símbolos. A dependência de ajuda militar para conseguir manter seu território dá margem para sua exploração econômica e fragilidade diante de ameaças.

 

Quando esteve sob domínio russo, instrumentos musicais tradicionais e o dialeto ucraniano foram destruídos pela URSS, uma maneira de atacar a identidade cultural de um povo, uma forma de fazê-los perder os símbolos que os mantinha unidos. Mas os ucranianos jamais se entregaram, resistiram à ocupação russa e conquistaram sua independência que agora novamente está em jogo.

 

Entretanto, como enunciei no início deste texto, não existe essa história de mocinhos e vilões, como será visto no tópico seguinte.

 

 

  1. Neonazismo

Um dos elementos sustentados por Putin em sua ação imperialista contra a Ucrânia é de estar A) combatendo grupos paramilitares neonazistas ucranianos e B) defendendo o povo que se considera russo dos ataques neonazistas e das forças oficiais ucranianas.

 

Para entender essas questões – e aqui não estou defendendo que Putin está correto – é preciso remontar ao passado. Alguns grupos de extrema-direita da sociedade ucraniana defendem que foi graças aos nazistas que o país conseguiu se libertar da ditadura Stalinista. Não se tratou apenas de uma “gratidão” a Hitler, mas também um modo de viver que ganhou uma massa e adeptos que atacam minorias sociais e buscam as obrigar a aderir aos costumes ucranianos. Esses grupos paramilitares ostentam a bandeira da Ucrânia ao lado da suástica nazista.

 

A influência desses neonazistas não se contêm às fronteiras ucranianas, espalhando-se por vários países da Europa até chegar ao Brasil. Grupos apoiadores do Presidente Jair Bolsonaro utilizam a expressão “ucranizar o Brasil”, que quer dizer nada menos que estabelecer à força um modo de viver, abolindo todas as demais formas de cultura e de expressão.

 

 

Após os conflitos na Ucrânia em 2014, o então presidente tido como pró-Rússia deixou o poder e Poroshenko ocupou o cargo. Este, alinhado com a União Europeia e os EUA, fez crescer consigo os movimentos nazifascistas no país. Ato contínuo, democraticamente eleito, o comediante judeu Zelensky assume o poder. Apesar de ter origem judaica (tal como este escriba), seu posicionamento fechado às influências russas garantiu apoio neonazista a ele. Durante seu governo agravaram-se os conflitos entre separatistas pró-Rússia e neonazistas.

 

 

O neonazismo na Ucrânia é uma realidade e não se pode fingir que não existe, como faz a grande mídia brasileira que praticamente assessora a Casa Branca. Contudo, sozinho não justifica uma invasão.

 

 

  1. Um presidente inepto

Esta seção será mais curta que as demais, pois pouco há que se dizer. O atual presidente da Ucrânia, Zelensky, coloca-se como um sujeito anti-política, um comediante sem qualquer experiência ou expertise que foi colocado no cargo como uma forma de protesto da população contra o estamento político.

 

O descontentamento popular em relação aos políticos, alguns vistos como subservientes à Rússia, levou ao poder um sujeito que fez a política externa desandar. Maquiavel já explicava que se não há força, é necessário se fortalecer com aliados, deve-se evitar conflitos se não tiver a condição de iniciar e manter uma guerra. O que Zelensky fez foi rasgar os manuais de diplomacia. No tabuleiro da política apostou todas as suas peças na possibilidade de ganhar aliados e o resultado foi provocar exatamente o que temia.

 

 

  1. imperialismo e a criação de narrativas e fábulas

Os Estados Unidos o tempo todo sabiam da inépcia do presidente ucraniano. Com a saída de Trump, que tinha “abandonado” a política externa, Biden assume com o objetivo de recolocar os EUA no tabuleiro internacional. Com menos de um ano de governo iniciou o assédio para cima da Ucrânia. A ideia de Biden era expandir a influência estadunidense na Europa e a Ucrânia seria um ponto central pelos motivos aqui já apresentados.

 

Zelensky de cara achou uma boa ideia e se iniciaram as tratativas. Ao mesmo tempo Putin afiou o discurso e passou a ser direto: caso não houvesse uma negativa formal da OTAN à Ucrânia, haveria guerra.

 

Enquanto escrevo, o Itamaraty publica nota pedindo uma resolução diplomática do conflito entre os países. Acontece que a diplomacia já foi abandonada em nome das armas. A saída mais rápida da tensão que culminou na guerra teria sido a OTAN reconhecer o acordo russo-estadunidense dos anos 1990 e deixar de aliciar a Ucrânia em troca da desmobilização militar russa.

 

É claro que após a invasão os Estados Unidos e o Reino Unido se colocam como solidários à Ucrânia, prometem retaliar a Rússia e falam em paz. Guerras são, antes de mais nada, disputas de narrativas. O Ocidente condena a Rússia e faz de conta que não participou da escalada da tensão. São as narrativas e fábulas que legitimam as políticas e a mídia têm papel central nisso.

 

Todos os grandes veículos de imprensa brasileiros reproduzem a versão de bom-mocismo estadunidense contra os agressores russos como se a política se resumisse nos bons contra os maus.

 

Pode-se argumentar que a Rússia toma uma ação fora do comum após a Segunda Guerra, o que em partes é verdade, mas apenas na Europa. Não se pode esquecer de guerras injustificadas (além da busca por petróleo ou controle de pontos estratégicos) como as investidas dos Estados Unidos no Vietnã, no Afeganistão, na Síria e no Iraque. As guerras no Oriente Médio, como as invasões ao Sul da Líbia e o conflito na Palestina que se arrasta por décadas também foram apoiados pelos Estados Unidos e Reino Unido. Não houve comoção internacional – que por si é criada a partir de um discurso. Os EUA se opõe de todas as maneiras a qualquer país que faça frente a sua hegemonia política e poderio militar – se realmente se importassem com democracia e Direitos Humanos, teriam algo a dizer sobre os conflitos na Somália, Iêmen e Sudão.

 

 

Ao cabo de todos esses elementos que devem ser considerados, fica claro que a ação militar russa não surgiu do nada, mas que foi, sim, provocada pelas potências ocidentais. Mas Putin, como dito na seção 3, é um autocrata imperialista (tal qual os presidentes dos EUA) com algo que pesa contra si: configura-se ditador há 22 anos no poder, persegue oposicionistas, prende aqueles que se manifestam contra seu governo, ataca minorias sociais e considera os Direitos Humanos como um entrave ao progresso social.

 

Enquanto os Estados Unidos praticam seu imperialismo baseado na falsa narrativa de levar a democracia aos povos e assim os explorar economicamente e espalhar bases militares pelo mundo todo, Putin avança suas fronteiras com base em uma ideologia identitária que beira ao nazismo.

 

Não se sabe qual será o resultado, apenas que o tabuleiro geopolítico está novamente a ser alterado.

 

      Alexandre Douvan

Jornalista e mestrando em Ciências Sociais Aplicadas

Equipe Gazeta
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