Escrito por; Évelyn Bueno. Mestranda em Desenvolvimento Regional pela Universidade do Contestado – UnC.
A tradição religiosa de São João Maria fundamenta-se na memória dos três monges que deambularam na região: João Maria de Agostini, João Maria de Jesus e José Maria, todos curandeiros e anunciantes da fé e da religiosidade.
Embora grande parcela da população considerasse a existência de apenas um personagem mítico, prolongada no tempo, no decorrer dos séculos XIX e XX, houve a presença de três monges na região.
O primeiro deles (primeira imagem da esquerda), o italiano Giovanni Maria de Agostini, que atuou como missionário religioso nos sertões brasileiros entre 1844 e 1852, levava uma vida simples e penitente, eventualmente começou a ganhar repercussão na crença popular que lhe atribuiu o dom de tornar águas milagrosas com poderes curativos. A crença popular teve rápida difusão na região do Contestado, quando as pessoas passaram a reunir-se ao redor do monge, o qual, por mais de uma vez teve que percorrer outros caminhos para evitar a aglomeração de féis.
Além do já citado João Maria de Agostini, que esteve no Brasil em meados do século XIX, o segundo, denominado João Maria de Jesus (no centro da imagem) que peregrinou pela região do planalto catarinense entre 1893 a 1906. E por fim o curandeiro José Maria (imagem da direita), o único dos três que participou da Guerra do Contestado, também conhecido como o monge da revolta (KARSBURG, 2014).
Dos três ícones anteriormente citados, apenas José Maria esteve presente na deflagração da Guerra do Contestado (1912-1916), que participou e foi morto no combate do Irani (1912). Após a morte de José Maria ocorreu um processo de “reelaboração mística”, quando as trajetórias de José Maria (mártir) e João Maria (santo) fundiram-se constituindo um tecido religioso e sociocultural que sustentou o movimento, sendo a “Santa Religião” o elemento aglutinador dos distintos objetivos que motivaram os revoltosos.
Ainda existe entre a população pertencente a região do Contestado a tradição religiosa ligada a figura de João Maria, de forma que a trajetória dos três monges perpetuou na região e na comunidade profundos laços de fé e religiosidade. A tradição religiosa está presente nas comunidades constituídas por descendentes dos integrantes da Guerra do Contestado, assim como dos descendentes dos movimentos denominados “pré e pós-Contestado”.
Os devotos contemporâneos de São João Maria foram denominados por Welter (2007) de “joaninos”. Os joaninos são indivíduos que possuem laços estreitos de religiosidade em torno do Monge João Maria, sendo eles sujeitos que reconhecem o monge a partir de referenciais culturais, históricos, religiosos, políticos, comerciais, entre outros. A principal característica desta comunidade é a hierarquia, de modo que o todo é mais importante que a individualidade, na medida que estão articuladas em torno de algo mais amplo, como a família e a comunidade, e o todo é incorporado a partir de sua participação nos espaços de sociabilidade (WELTER, 2007).
Os joaninos carregam crenças que foram transmitidas oralmente entre gerações de devotos de João Maria. A presença da fé ao monge situa-se em diversos aspectos, em especial os rituais coletivos. Além do aspecto religioso o personagem se faz presente nos procedimentos de cura em razão do seu profundo conhecimento de ervas medicinais. Esses conhecimentos foram apropriados pelos joaninos e adaptados às situações contemporâneas. Tais influências remetem ao reconhecimento de João Maria de muitas formas pelos joaninos, como divindade, santo e profeta.
Cabe destacar que o monge também representa a luta pela justiça social, na qual aparece como símbolo de luta dos “excluídos”, discurso legitimado por lideranças de movimentos sociais que buscam nele o fortalecimento de lutas políticas, especialmente a luta pela terra (WELTER, 2013).
Com base nas constatações realizadas por Karsburg (2014) e Welter (2007), é significativa a importância da presença de João Maria de Agostini, João Maria de Jesus e José Maria na construção de uma nova perspectiva de mundo para a população camponesa, ao passo que seu discurso sobrevive no presente, transmitido entre gerações. Esse discurso subsidiou o surgimento de novo credo religioso, uma nova forma de organização social, e até mesmo na união de pessoas que se reconhecem como uma classe social, pautada na solidariedade e pela primazia do bem-estar da comunidade sobre a individualidade.
Conforme destacado por Machado (2013) existe conexão entre os movimentos sociais ligados à tradição de São João Maria, sendo que num período de aproximadamente cem anos (1848-1942) ocorreram concentrações camponesas no Sul do Brasil em torno desta figura, denominados como movimentos “pré” e “pós-Contestado”, que serão tratados em próximas publicações.
Portanto, observa-se a grande representação da tradição religiosa de João Maria na região, de modo que após um século do fim da Guerra do Contestado, e há mais de um século e meio da passagem do primeiro monge pelo Sul do Brasil, permanecem os vínculos culturais e religiosos entre os joaninos.
Referências
KARSBURG, Alexandre. O Eremita das Américas: A odisseia de um peregrino italiano no século XIX. Santa Maria: Ed. UFSM, 2014.
MACHADO, Paulo Pinheiro. “Uma constelação de concentrações: a tradição de “São João Maria”” e movimentos rurais no Sul do Brasil”. In: WEHLING, Arno; et al. Cem anos do Contestado: memória, história e patrimônio. Florianópolis: Memorial MPSC, p. 71-87. 2013
WELTER, Tânia. Encantado no meio do povo. A presença do profeta São João Maria em Santa Catarina. In: WEHLING, Arno; et al. Cem anos do Contestado: memória, história e patrimônio. Florianópolis: Memorial MPSC, p. 125-156, 2013.
WELTER, Tânia. O profeta São João Maria continua encantando no meio do povo: um estudo sobre os discursos contemporâneos a respeito de João Maria em Santa Catarina. 2007. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007.