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A pandemia e o novo normal

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Embora seja fato que há uma determinada parcela de pessoas diante do contexto do quadro e da crise sanitária provocada pelo coronavírus que cogitam e até mesmo agem como se a pandemia não existisse, ou até mesmo chegam a negar os desdobramentos e consequência mundiais causadas pela Covid-19, é fato que a pandemia “chacoalhou” o mundo.

 

Num primeiro momento do advento do vírus e das primeiras medidas de isolamento e proteção individual e coletiva, fomos, de forma abrupta e imediata, colocados em quarentena. Em cidades, regiões e até mesmo em países inteiros, o direito de ir e vir ficou restrito. Ficamos fechados, confinados dentro de nossas próprias casas. Como medidas de precaução e preparação para este isolamento, indivíduos lotaram supermercados e farmácias, compraram tudo o que podiam, deixaram prateleiras vazias. Para grande parte daqueles que correram para se preparar para o isolamento, a última coisa que importou foi se havia mais alguém atrás da fila do supermercado e muito menos se era preciso pensar nesse “alguém”. O “meu primeiro”, reinou! Minha casa primeiro, meu trabalho primeiro, meu remédio primeiro, meu álcool em gel primeiro, numa visível demonstração de alguns instintos mais primitivos de sobrevivência da espécie.

 

Já dentro de nossas casas, neste primeiro momento da quarentena, fizemos o que era possível fazer: dar aulas online, home office,  exercícios físicos, reflexões, análises e, receitas, muitas receitas trocadas e compartilhadas, depois surgiriam as lives. Os artistas da música sertaneja arrecadaram e ganharam muito dinheiro em suas lives na pandemia, e deram sequência a suas rotinas (agora virtual) de influenciar gerações inteiras em estilos de vida cujo ápice gira em torno de beber e beber mais ainda, para afogar as mágoas da sofrência, com isso continuaram ganhando ainda mais dinheiro. Outras lives de outros artistas e de outros ritmos musicais surgiram, outras foram riquíssimas do ponto de vista reflexivo para questões urgentes e pontuais nas questões de relações humanas e a educação, a ciência, a filosofia e a sociologia. Enfim, o que mais se viu foi live nesta quarentena. Proibidos de se encontrarem pessoalmente pela ameaça do vírus, as pessoas viram o meio virtual se consagrar como “salvação” para o “convívio” e as relações com o outro. Se cantar nas janelas era a única opção para se fazer ouvir no conjunto de edifícios da urbus moderna como fizeram os isolados italianos, pelo menos este canto pode chegar virtualmente aos quatro cantos do mundo.

 

Reclamar da rotina de trabalho e do pouco tempo para “viver de fato” quando ela era a condição, nunca foi novidade diante das relações humanas na contemporaneidade, mas de repente se ver sem essa rotina levou as pessoas a fazerem questionamentos mais profundos acerca dos valores e da condição humana diante de um contexto de trabalho/consumo e mais trabalho para mais consumo.

 

As redes sociais de repente tornaram-se o meio para externar sentimentos comuns de reflexões acerca “daquilo que realmente vale a pena na vida”. Do quanto um lar, saúde e poder conviver com aqueles que amamos são importantes. Do quanto precisamos valorizar as pequenas coisas. E o que dizer dos abraços! Milhares de publicações salientando a importância do toque, do convívio, do aconchego, da visita e do carinho aos pais e avós idosos. E quem não recebeu aquele “abraço virtual” pelas redes sociais, certamente não viveu esta quarentena direito.

 

Se pelo aspecto do senso comum vimos externar sentimentos e questionamentos daquilo que somos e fazemos de nossas vidas a partir de um quadro novo, urgente e determinante em nossas vidas como foi a chegada desse vírus, de outro lado, pensadores, pesquisadores, cientistas e intelectuais de todas as matizes dedicaram-se às análises teóricas de um mundo brutalmente acometido de um vírus que instantaneamente mudou rotinas, fechou fronteiras, derrubou índices econômicos, gerou incertezas e mostrou a fragilidade de economias pujantes, mas que ao longo de suas constituições econômicas capitalistas neoliberais optaram por não cuidar do bem comum.

 

E vimos e continuamos vendo milhares de mortes causadas pelo Covid-19 nos Estados Unidos da América, por exemplo. Analistas nos mostraram desde o início da crise que o mundo que é nosso, hoje, da forma como se constitui, não responde bem a uma crise. O filósofo israelense Yuval Noah Harari nos diz que “A humanidade hoje enfrenta uma crise global. Talvez a maior crise de nossa geração.” Nos disse também que “As decisões que as pessoas e os governos tomarão nas próximas semanas provavelmente moldem o mundo nos anos vindouros”[1].

 

Já para o filósofo sul coreano Byung-Chul Han, “o coronavírus está colocando nosso sistema à prova”[2]. Para o filósofo italiano Domenico De Masi, a lógica neoliberal terá que mudar, e que o coronavírus anuncia a revolução no modo de vida como a conhecemos.[3] O pensador francês Edgar Morin, nos disse que, “Essa crise nos leva a questionar nosso modo de vida, nossas reais necessidades mascaradas nas alienações da vida cotidiana”[4].

 

Independente se sob a ótica de uma leitura comum ou análise profunda, sentimos que vivemos crises. E elas são no plural, a pandemia nos mostrou que podemos ser acometidos a qualquer momento e sem aviso prévio de crises sanitárias, de comorbidades que assim como o coronavírus, parecem deixar mais claro outras crises que esta constituição de mundo moderno/capitalista trás ao longo de sua trajetória. O mundo viu a grande maioria das nações ao longo do globo não saber dar respostas imediatas, concretas, efetivas e seguras em suas constituições econômicas e políticas diante da crise provocada pelo coronavírus. E vimos a olhos nus as crises de Economia e de Estado junto com a crise da doença e da saúde.

 

Hoje, a crise sanitária ainda não passou. Lidamos ainda com as “curvas” estatísticas que nos mostram os estágio de proliferação e transmissão do vírus e os níveis de ascensão bem como o controle da doença. Algumas curvas em algumas regiões já chegaram ao seu pico, outras ainda sobem e mais algumas que ainda não podemos afirmar seu destino. Além disso, em algumas regiões da China, por exemplo, que já viam suas vidas voltar ao normal, surgem novos indícios de retorno das transmissões[5]. Não podemos descartar o medo de que talvez não seja assim tão simples ou uma questão de tempo até controlar a pandemia. Concomitante a este medo não podemos descartar e nem deixar de ver aflorar, cada vez mais, o desejo de “ter a vida de volta”, ou voltar ao normal!

 

Mas o que seria este normal? Talvez essa pergunta seja respondida a partir de outra pergunta: o que você tem vontade de fazer quando a pandemia passar? No Brasil, embora nenhum de nós veja ainda um arrefecimento dos casos, ou a curva baixar, como já dissemos, já vemos indícios de relaxamento das medidas de isolamento e das restrições nos estabelecimentos de produção, serviços e de consumo. Gradativamente, vemos a reabertura de shoppings e centros de comércio e serviços. Afinal, a economia não pode parar.

 

Se sua resposta para a pergunta o que você tem vontade de fazer quando a pandemia passar for trabalhar para poder voltar a consumir, fazer compras, frequentar ou realizar festas e confraternizações, poder frequentar lugares, shows, bares, restaurantes, comprar a carne e a cerveja para o churrasquinho de fim de semana sem se preocupar com filas, álcool em gel, máscaras, espirros e lavar a mão “quinhentas vezes por dia”. Se sua vontade é de que “tudo volte ao normal” para você poder chegar de uma semana de trabalho e poder postar um stories digno de um cidadão decente e trabalhador com a hashtag “sextou”, ou, “porque hoje eu mereço”… sinto muito mas, nada mudou!

 

Se sua resposta for sim para as opções após isolamento acima citadas, você, se me permite, caro leitor, não entendeu as famosas “lições da pandemia” e  irá corroborar para as estatísticas daqueles não tão otimistas com a ideia de que sairemos outros depois da Covid-19. Vimos acima que para alguns pensadores “o coronavírus anuncia a revolução no modo de vida como a conhecemos” e que “essa crise nos leva a questionar nosso modo de vida”.

 

Não caro leitor, não discordo dessas leituras e muito menos que a crise não tenha sido motivo suficiente ou que não tenha desencadeado importante momento para questionarmos o mundo que criamos e que vivemos. Atento para o fato um tanto quanto, se não cético, realista, de que questionar não significa necessariamente mudar hábitos. Embora saibamos que a mudança passa pelo questionamento.

 

O sistema capitalista ganha força e se instaura como modus operandi, como percepção do que “seria melhor” para o ser humano… Uma vez adotado, talvez seja apenas o passar do tempo e os próprios seres humanos que o adotaram, que irão lenta e gradativamente percebendo suas contradições (na forma de crises existenciais, no sentido de se perguntar: eu estou feliz? isso é o melhor pra mim?), que começarão a pôr este sistema em cheque. Ora, quem implanta e mantém o mundo capitalista? A lógica de produção e consumo. Ou seja, nós trabalhadores que produzimos e que ao mesmo tempo consumimos, só quando essa lógica for revista é que haverá mudanças e minha hipótese é que ela virá do interior do capitalismo. A pandemia chegou de fora, do exterior para o indivíduo, e cenas que mostram shoppings lotados após a reabertura, nos mostram que o normal ainda é “afogar as mágoas” em mais consumo, embora sabendo que as crises sanitária, econômica e por consequência políticas, são frutos exatamente desta lógica de produção e consumo.

 

Edina Maria Burdzinski

Professora de Sociologia

Mestre em Ciências Humanas.

[email protected]

[1] https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/analise/63869/yuval-harari-sobre-coronavirus-humanidade-nao-voltara-a-ser-como-antes

[2] https://brasil.elpais.com/ideas/2020-03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-han.html

[3] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/03/coronavirus-anuncia-revolucao-no-modo-de-vida-que-conhecemos.shtml

[4] https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Sociedade-e-Cultura/Edgar-Morin-Essa-crise-nos-leva-a-questionar-nosso-modo-de-vida-nossas-reais-necessidades-mascaradas-nas-alienacoes-da-vida-cotidiana-/52/47272

[5] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/06/17/china-e-nova-zelandia-mostram-que-nao-ha-como-se-livrar-da-covid-19.htm

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