Os pocinhos do monge São João Maria, conhecidos também por “Águas Santas”, são encontrados pelo interior de muitos municípios da Região Sul do Brasil, especialmente na que ficou conhecida como a região da Guerra do Contestado, devido à guerra de mesmo nome, que ocorreu entre 1912 e 1916 no Meio Oeste, Planalto Norte Catarinense e Centro Sul do Paraná.
Segundo a tradição popular, estes pocinhos são lugares onde o monge São João Maria passou. Por essa razão, são considerados, pela população humana regional, locais de espiritualidade e de devoção. Normalmente, os pocinhos, além de fornecerem água “potável”, também são locais procurados por muitas famílias para batizar, benzer seus filhos, fazer pedidos e agradecer por bençãos alcançadas, tais como cura de uma moléstia ou livramento de males físicos e espirituais. Nestes, sempre há uma imagem do monge, seja ela uma fotografia ou uma escultura, e, junto a ele, uma falange de santos de devoção, como Nossa Senhora Aparecida, São Jorge e São Sebastião, dentre outros. A tradição dos pocinhos do monge é uma prática centenária, mantida viva, principalmente, graças a lideranças populares femininas.
Fonte: Registro fotográfico de Marciel Borges (Rádio Colmeia – Porto União-SC).
A tradição dos pocinhos ou águas santas de São João Maria remonta ao século 19. Embora singular, pela presença da imagem e do culto ao monge, o culto às águas é uma prática milenar, que ganha contornos e contextos muito específicos na história mundial. Na Região do Contestado, a tradição foi inserida pelo monge italiano Giovanni de Agostini (1801-1869), um eremita, místico e líder espiritual que peregrinou pelas Américas por três décadas. Depois dele, outros andarilhos, popularmente identificados como monges, também passaram pela região e consolidaram as práticas de batismo doméstico, de cura com ervas naturais e de aconselhamento espiritual. Entre eles, o chamado monge José Maria, importante curandeiro, que foi morto de forma trágica, ao tentar impedir que o Regimento Militar Paranaense atacasse um acampamento de doentes reunidos em Palmas. O episódio ficou conhecido como Batalha do Irani (22/12/1912), e foi fundamental para a constituição da Santa Religião de São José e São João Maria, criada no ano seguinte sob a inspiração de crianças videntes. Assim como outros andarilhos posteriores a Agostini, José Maria foi identificado e incluído na tradição de João Maria, fomentando uma tradição importante que deu origem ao que a antropóloga Tânia Welter denominou de tradição joanina.
Fonte: Arquivo de Fernando Tokarski.
Fonte: Arquivo de Fernando Tokarski.
Fonte: Arquivo de Fernando Tokarski.
Uma das marcas ou características das tradições deixadas pelos monges refere-se aos pocinhos d’água, que constituem pequenas fontes de água cercadas por vegetação nativa que, normalmente, proporcionam ambiente agradável e místico. De acordo com a crença popular, essas águas possuem propriedades curativas e até milagrosas. Esses locais se relacionam aos monges, por estes serem locais onde, segundo a tradição, costumavam fazer seu pouso e se banhar (diz a lenda que onde o monge dormia, brotava uma fonte de água potável). Por estarem ligados à imagem do monge, esses pocinhos tornaram-se centros de peregrinação, espiritualidade e devoção, pois se acreditava que o local teria sido abençoado, e, por isso, essa fonte nunca secaria.
Em razão dessa tradição, os pocinhos passaram a ser lugares de batismo doméstico para as crianças, filhos de devotos. A celebração desses batizados nos pocinhos, efetuados antes do batismo oficial na igreja, é um evento de grande significado espiritual para muitos habitantes regionais, onde, além da família, leva-se junto a futura madrinha da criança, visto que o padrinho é o próprio monge. Essa prática é uma oportunidade não apenas de introduzir as crianças na dimensão da fé, da espiritualidade e conectividade com a natureza, mas, também, de conectá-las com as raízes espirituais da comunidade e com a tradição de São João Maria.
A história dos pocinhos do monge São João Maria está profundamente entrelaçada com a própria história e cultura da população regional. Neste sentido, é importante lembrar que o monge não é considerado Santo pela instituição da Igreja Católica, mas, sim, pela crença popular. Tampouco, é oficialmente um monge. Esse é um título popular, atribuído pela população, como a cultura dos beatos, no nordeste brasileiro. Por isso, em muitas grutas, pocinhos e até capelas é comum a presença de imagens do monge ao lado de imagens de santos católicos.
A tradição de fazer batizados nesses pocinhos é um exemplo de como as comunidades rurais mantêm suas raízes culturais ancestrais e espirituais. É o caso da comunidade de Felipe Schmidt, interior do município de Canoinhas/SC, dentre tantas outras, que possuem esses lugares considerados sagrados. Nessa comunidade, a fonte é mantida há muitos anos por uma moradora local (vizinha do pocinho) e por seus familiares, sendo essa senhora uma das responsáveis pela cerimônia dos batizados.
Fonte: Arquivo de Josmar Kaschuk, 2023.
A preservação dessa prática no presente demonstra a força da crença e da memória dos homens e mulheres do Contestado, que fundaram as Cidades Santas, sob a liderança espiritual do monge João Maria. Em um mundo afetado por características pautadas nas relações de ódio, de violência, de insegurança e de exploração sobre a força de trabalho dos mais pobres, em uma sociedade regida pelo apagamento das lutas e dos projetos de sociedades de tradição popular, é reconfortante ver e reconhecer que certos lugares considerados “sagrados” atravessaram a fronteira dos tempos, as mudanças políticas e econômicas e a devastação ambiental, para se afirmarem como potência de tradição e continuidade na crença de São Maria. Os pocinhos de águas santas, mantidos pela fé daqueles que cultuam a memória do monge, representam uma prova material e espiritual de que nem a repressão física, nem a violência discursiva, repetida em documentos e livros oficiais, são capazes de derrotar a memória e a fé.
Os pocinhos são locais de orações e meditações, que permitem refletir sobre as relações da sociedade humana entre si e com os bens naturais, especialmente com as águas, bem como, fortalecer as raízes históricas e espirituais e promotoras na luta coletiva por direito à cultuar figuras santificadas que estiveram e que estão próximas das populações mais humildes e de classes populares, na atualidade. À medida em que as novas gerações são apresentadas a essa tradição, a história dos pocinhos do monge São João Maria continuará presente, proporcionando que a espiritualidade e a cultura regional permaneçam vivas.
Autores:
JOSMAR KASCHUK – MESTRANDO NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL DA UNIVERSIDADE DO CONTESTADO (UNC). E-MAIL:[email protected]
THOMAS FELIPE BIANEK BARBOSA – MESTRANDO NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL DA UNIVERSIDADE DO CONTESTADO (UNC).
JAIRO MARCHESAN – DOCENTE DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL DA UNIVERSIDADE DO CONTESTADO (UNC). E-MAIL: [email protected]