Escrito por; Graciela Márcia Fochi
As manifestações sociais mobilizadas em torno da morte do norte-americano George Floyd tem chamado a atenção diante do fato de que certos atos de insatisfação e revolta acabaram por tomar como alvo bens do patrimônio histórico e cultural em diversas cidades do mundo.
A exemplo disso pode-se mencionar o ataque a escultura do escravocrata Edward Colston na cidade do Bistrol no interior da Inglaterra, os debates que surgiram em torno do monumento às Bandeiras e à estátua de Borba Gato no estado de São Paulo que tratam das expedições de exploração do território, busca por minérios e ataques aos indígenas no interior do Brasil, bem como o anúncio da retirada da estátua do norte-americano Theodore Roosevelt, que contém forte conotação racista, da entrada principal do Museu de História Natural de Nova York.
Os tempos atuais tem se caracterizado como de ampla reflexão, deslocamento e debate para as noções de raça, gênero e geração o que por sua vez não deve ser sofrer retrocessos, recuos, distorções e/ou descaminhos. Entretanto tem sido registrado ações e manifestações que foram levadas ao cabo sob a égide da violência, do autoritarismo e intolerância, o que por sua vez está no pano de fundo das ideologias, das práticas e culturas que estão sendo questionados e quer-se ultrapassar.
Ou realmente queimar igrejas católicas vai desfazer os séculos de inquisição que existiram? Implodir os projetos de Lúcio Costa e Oscar Niemayer em Brasília vai sensibilizar os representantes políticos e/ou os respectivos eleitores?! Se assim o fizermos nos restará apenas pinturas de artistas da época, documentários e imagens já produzidos, assim como o imaginário, a memória e o testemunho de quem conheceu estes bens…ou também estas evidências e expressões deverão ser destruídas, apagadas e esquecidas?
Outro aspecto está também no fato de que tal forma e estratégia de catarse, de reclamação por justiça e reparação civil nos faz recordar da irônica frase proferida pelo italiano Giuseppe di Lampedusa (1896-1957), na obra OGattopardo (O leopardo) de 1958 que consistia em “para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”. Como que quando, insatisfeitos com as coisas dentro de casa, resolve-se mudar a disposição dos móveis, esquecendo que os móveis e a casa permanecerão os mesmos.
Dito de outro modo, corre-se o risco de que, em meio as lutas agora pleiteadas, ocorram mudanças e deslocamentos apenas no que diz respeito às peças e aos integrantes do jogo, enquanto que o jogo propriamente dito permaneça intacto e até mesmo se torne ainda mais severo. Como fruto disto, em pouco tempo teremos outras insurreições de mesma natureza, desta vez promovidas por aquelas raças, gêneros e gerações que desta vez foram excluídos, deixadas de fora. Enquanto o jogo não mudar, tudo permanecerá como está.
Destruir igrejas, monumentos, esculturas, pichar edificações parecem atos pouco assertivos no sentido de repensar e mudar a racionalidade na qual se encontra imersa toda uma sociedade, suas instituições, seus organismos e legislações que foram e são responsáveis por produzir, manter intactas e perpetuar as condições de injustiça e desigualdade que se apresentam insustentáveis.
É compreensível que o teor e grau de insatisfação manifestado pelos grupos reivindicatórios seja difícil de ser manifestado, traduzido e comunicado a partir de ímpetos, ânimos e linguagens amenas ou pacíficas, entende-se e não há quem negue que se tratam de reações resultantes de sucessivas épocas e séculos de lutas, de promessas, de espera por mudanças, e que não se tratam apenas do fruto dos últimos acontecimentos e/ou “no calor da hora”.
Poderia ser mais interessante debater e repensar sobre quem são e foram os vencedores, os vencidos, os heróis, os criminosos, quais as resistências, as contravenções, as dissidências seja do colonialismo, da escravidão, das Entradas e Bandeiras, das inúmeras revoluções e guerras, do império, da república, da democracia, do revisionismo, do negacionismo, do maniqueísmo, entre outros?!
Os bens que estão sendo alvo de ataques também poderiam proporcionar as condições para análises contextualizadas, dialéticas e críticas sejam feitas para com o que é monumento, documento, memória, história, bem como servir de suporte à fins ainda mais didáticos e pedagógicos, tendo como preocupação as questões de que material e técnica foram utilizadas, a que estilo ou o movimento artístico pertencem, o contexto de época, quem foi responsável por produzi-las, quem as encomendou, para que finalidade, o espaço que ocupam na paisagem da cidade…diante dos ataques que tem sido desferidos é até mais louvável que sejam erguidas outras obras, agora narrando as histórias que foram dos que tiveram as suas negadas e omitidas.
Para purgar toda uma história de crimes e injustiças é mesmo preciso cometer outros tantos?! Quer-se reinstituir o Código de Hamurabi ou a Lei de Talião?! Em pleno século XXI esta seria a resposta que se tem para oferecer?! Onde a civilização e o homem perderam a grandeza e a capacidade de perdão e superação?! Certa vez, em meio aos horrores do holocausto nazista, o povo judeu foi capaz de perdoar seus carrascos.
Nos últimos anos do século XIX Nietszche (1844-1900) proferia a seguinte frase: “nós modernos, nós semibárbaros”, a dinâmica dos acontecimentos e manifestações que tem ocorrido nas primeiras décadas do século XXI e nas últimas semanas nos permitem atualizar a sentença nietzschiana nos termos de “nós ultramodernos, nós protobárbaros”.
Graciela Márcia Fochi: Docente dos cursos de História, Arquitetura e Urbanismo e Serviço Social do Centro Universitário Leonardo da Vinci/UNIASSELVI. Graduada em História/UPF, mestre em Patrimônio Histórico e Cultural/UNIVILLE, doutoranda em História Global/UFSC. E-mail: [email protected]